Dona Clarissa

Dona Clarissa decidiu que iria fazer a maniçoba ela mesma.

O local mais importante depois da passagem da imagem da santa, era a mesa. Clarissa que faria aniversário no dia do Círio, decidiu que iria caprichar mais ainda por serem duas datas importantes.

Ainda faltavam alguns dias para o segundo domingo de outubro. Foi ao mercado do Ver-o-Peso e comprou a maniva, ainda bem verde, já moída. As folhas trituradas ainda precisavam ser fervidas por sete dias, o tempo que leva para o veneno das folhas sair. A coloração verde clara, ganharia uma cor escura, saborosa.

Escolheu uma panela grande, começou o preparo a noite, fogão queimando e a água que começava a borbulhar cheia de folhas trituradas.

Lembrou do que a mãe lhe disse certa vez, sobre o veneno das folhas e o tempo. Ela sorriu. Saudades da mãe.

Panela fervendo. Pegou o telefone, ligou para a filha. Ela viria com o novo namorado. Ligou para a irmã, iria com um namorado, que tinha a idade do namorado da filha. Depois para um tia, a mais velha de toda a família, disse que iria com a uma cuidadora. depois de algumas ligações, todos foram convidados, ou melhor, faltava alguém.

Remexeu a panela com uma colher de pau, sentou em um banco na cozinha e hesitou se faria o último convite, aquele que ela mais queria convidar, decidiu esperar mais alguns dias, pensando que se o veneno da maniçoba estava evaporando e sumindo, assim deveria ser na vida. Um pouco de espera. Ainda que longa, resultaria em algo bom.

Alguns dias depois, a maniçoba começava a ganhar a cor escura. O Círio seria em 4 dias e o convite principal ainda não havia sido feito. A tia já havia ligado duas vezes para confirmar se estava mesmo convidada, e dizer que só iria por que era Círio, e que ela deveria saber das suas dores. Sim, sabia das dores da tia, mas ninguém sabia das suas.

Na sexta começou a arrumar a casa, com ajuda de uma moça que trabalha em sua casa alguns dias por semana. Na verdade a moça arrumou a casa toda, só não pode tocar na maniçoba. Aquela panela era sua, se alguém ajudasse, não poderia dizer que havia feito sozinha e que aquele cheiro maravilhoso, possivelmente de veneno evaporado, era o resultado de seu esforço. Naquele dia não ligou, nem recebeu chamadas.

No sábado a filha apareceu. Com o namorado. Não gostava do rapaz, e a lista ganhou mais um motivo quando viu ele tentando provar a maniçoba com a colher de pau. Pensou que talvez fosse uma boa ideia ele provar antes do tempo. Talvez ainda tenha veneno, pensou.

Assistiram pela televisão a ida da santa para outra igreja, no dia seguinte voltaria pelo mesmo caminho, para o mesmo lugar. Lembrou que faltava fazer um convite. Era o último dia que poderia fazer. Senão ele não viria. E se fizesse, será que ele viria?

A filha dormiu na casa da mãe, o namorado fingiu dormir na sala, mas pela manhã não havia ninguém na sala. Dona Clarissa suspirou fundo. Mais cedo que combinado a campainha tocou. A tia chegou. Já sabia que era ela antes mesmo de abrir a porta, entrou falando no tom habitual. Máximo. Foi direto a panela, levantou a tampa, disse que pelo cheiro parecia boa.

Acompanharam pela televisão a procissão e as músicas enquanto iam se acomodando nos sofás e cadeiras da sala. O almoço seria servido quando a santa chegasse. Pelo menos metade dos convidados já havia pensando que seria melhor se não chovesse esse ano. Mas logo depois começou uma chuva fina. Refrescando os romeiros que estavam na corda, ou se empurravam nas calçadas esperando a santa passar. Na casa de Dona Clarissa, todos sentados. Menos ela que já havia ligado o fogão para aquecer a maniçoba.

Quando a santa chegou ao destino, muitos se levantaram. A tia que tinha dores nas duas pernas já estava em pé, perto da mesa. A irmã chegou nessa hora, com o namorado novinho. Estava na rua esperando a santa passar para pagar uma promessa. Seria ele a promessa? Dona Clarissa pensou que a essa altura seria impossível o último convidado chegar. A campainha tocou. Era o ex-marido, pai de sua filha. Como seria possível ele ter vindo, se ela não o convidou. A filha veio da sala falar com o pai. Disse para a mãe que ele passaria o Círio sozinho. Obrigado por me avisar, pensou.

Todos reunidos na mesa, comeram, fizeram elogios. A tia reclamou do sal, mas estava com a boca cheia demais para ser compreendida. Dona Clarissa ainda não tinha conversado com o ex-marido, mas quando foi na cozinha buscar mais guaraná para colocar na mesa, ele a ajudou. Disse estar feliz com o convite. Ela entendeu que a filha deveria ter sugerido que ela o convidara.

Quando as pessoas começaram a ir embora, a tia dormia de boca aberta no sofá. Dona Clarissa e o ex-marido conversaram. Ele estava sozinho, parece que a vida havia sido mais dura com ele do que com ela. Chegou a hora dele ir embora. Pensou que ela iria pedir para ele ficar. Não houve esse pedido. Depois de alguns anos fervendo de raiva, suas mágoas passaram, mas ao contrário da maniçoba, que havia ficado saborosa, o resultado desses anos de fervura toda foi o contrário. A indiferença.

No ano seguinte ela faria outra vez a maniçoba. O ex-marido não apareceu, a tia chegou antes do combinado a irmã chegou com o namorado. A maniçoba daquela casa era a mais cheirosa de todas as casas próximas.

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2 comentários Adicione o seu

  1. Cadê a maniçoba da Clarissa aqui. ein?

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